Tem gente que guarda anos a fio verdadeiras tranqueiras pela possibilidade de virem a usar algum dia. Na minha casa é uma esquizofrenia.
O que mais escuto por aqui é que pertenceu a alguém especial, ser este que já foi desta para melhor há muito tempo.
Lembro de tudo, minha memória é de elefante. Minha homenagem são as minhas lembranças não os armários.
Tenho ataques de organização. Não tão frequentes quanto gostaria ou precisaria, eficientes. Quem vê de fora fica impressionado e acredita piamente ser histeria generalizada.
No ano passado tive um surto, o mais profissional de todos. Olhei bem a minha sala e vi um mausoléu. Percebi que numa das paredes estavam penduradas 14 fotos em preto e branco com moldura em ouro velho. Analisei bem cada uma das imagens e me dei conta que de todas as pessoas ali fotografadas apenas duas estavam vivas, eu era uma delas. Uma cópia fiel dos túmulos do Cemitério do Araçá na minha própria sala de estar. Estar? Só se for estar morto. Me deu um siricutico e decidi colocar um fim naquilo entre outras ações para completar o Feng Shui.
Todos os móveis, bonitos realmente, pertenceram a alguém. Morto é claro.
Deu uma repaginada, troquei todos os tecidos por estampas mais alegres e claras, tirei todos os quadros, pintei as paredes com outra cor e casa deu um up.Fotos, agora, só de gente viva e alegre. Coloridas.
O ataque não parou por aí. Abri todos os armários que aqui não faltam. Encontrei tanta coisa inútil que foi difícil saber por onde começar. A maioria do antiquário não pertence a mim, negociei com os donos de direito a eliminação das peças de museu. Uma escavação arqueológica.
Somos leitores vorazes. Me deparei com a estante de livros e vi uma enciclopédia de 20 volumes em inglês. Os dados desatualizados como era de se esperar, a concorrência com o Google é desleal. Em inglês dificulta mais ainda a consulta. Depois de argumentar até a exaustão consegui retirá-la para levar a uma loja de livros usados, sem querer um só tostão por aquilo, apenas me livrar. Nem o sebo quis.
Antes de ficar na Europa por um ano, o meu rebento separou uma parte do que era precioso e guardou numa mala, sem alça nem rodinha. Ingressos do São Paulo, revista com o impeachment do Collor, morte do Tancredo e por aí vai. Ora, a Veja tem um arquivo digital! Voltou há mais de um ano. O baú nunca mais foi aberto. Continua lá como uma peça preciosa, intocável.
Descobri recentemente um compressor portátil. Nem sabia que tinha um. Meu pai andava com aquilo no porta-malas do carro. A cada freada o dito cujo chacoalhava. Um inferno. O motivo – se furar um pneu não fico na mão. Para que seguro 24 horas? Deixou o objeto indispensável como relíquia para meu marido. Ele não se desfaz nem que a galinha crie dentes. A justificativa – É útil e vou usar um dia. Ora, cara pálida, o negócio só funciona no acendedor de cigarros do carro. Se está aqui e não no automóvel qual é a utilidade? Um dia comprarei um carregador de 12 v? Legal, para que mesmo? Para encher bexigas? Só para lembrar não temos mais criança em casa há séculos, embora para os pais os filhos sejam eternas crianças, isso é demais. O compressor continua aqui.
Descobri sombrinhas do século XIX atrás da porta do quartinho na área de serviço. Não servem para abrigar-se da chuva, feitas num tecido que não é impermeável. Para que guardá-las? Pertenceram a minha bisavó. Jesus, você nem conheceu a senhora!O mais grave são as fotos. Caixas enormes, com cheiro de bolor, com fotos do tempo das zagaias. Mostrei as imagens, repassei, ninguém sabe quem são. Posso jogar fora? De jeito nenhum, não se descarta fotos. É uma heresia. Parece a continuação do filme Os Outros, só falta ter fotos de também de falecidos. Estão lá pegando poeira e ocupando espaço.
Tenho pena dos meus filhos. Quando morrermos, terão um trabalho hercúleo para se desfazer do mausoléu.
Marot Gandolfi
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