domingo, 27 de março de 2011

Aqui não tem que


Dez anos atrás construímos uma casa de campo no interior de São Paulo. A realização de um sonho. Nosso ponto de equilíbrio.
Temos uma placa esculpida em madeira no portão “Aqui não tem que”. Não tem que acordar cedo, não tem que acordar tarde, não tem quer almoçar ao meio dia, não tem que almoçar às 4h. Não tem que nada.
Um lugar perfeito para desestressar da insana rotina da cidade grande, reenergizar, pisar descalço na grama, tomar sol, dormir, cozinhar sem ter obrigação.
Escolhemos este lugar por ter um ar diferente dos condomínios tradicionais. Cavalos são os meus vizinhos de cerca, lagos com gansos e patos, trilhas, ruas de terra. Há alguns anos decidiram fazer um calçamento. Fiquei apreensiva, achei que poderia urbanizar o paraíso. No começo fui absolutamente contra, mas depois que vi algumas ruas com o calçamento, mudei drasticamente de opinião. Optaram não por asfalto, mas por bloquinhos de concreto. Não interferiu em nada na bucólica paisagem.
Meu recanto fica num vale, local aprazível, e que está na congruência de duas ladeiras. Nos últimos verões temos enfrentado chuvas torrenciais. As ladeiras se transformam nas Cataratas do Iguaçu. Invadem meu terreno e desaguam na piscina que vira um mangue com direito a sapos e rãs. Eu sou o único ser que construiu um degrau para subir em uma escada que desce servindo de acesso para a piscina. Surreal. O povo escala um degrau para depois descer vários. Sistema luso.
O evento é similar ao que vem acontecendo na região serrana do Rio de Janeiro. A diferença é que a ocupação do terreno não foi ilegal, investimos todas as nossas reservas, e não é a Prefeitura, o Governo Estadual nem o Federal que têm que resolver o perrengue. É a Administração do Condomínio.
Comecei a via sacra. Redigi inúmeras vezes o problema no livro de reclamações da secretaria. Virou o livro das lamentações. Aboliram o objeto e introduziram folhas soltas. Perdi a conta em quantos pergaminhos relatei meu drama. Aonde foram parar? Nem o Papa Bento XVI sabe.
No final do ano passado pedi uma audiência com o presidente. É mais fácil conseguir um espaço na agenda do Lula ou da Dilma.
Argumentei de forma educada, equilibrada e bem humorada. Descobri que alguns seres confundem bom humor com falta de seriedade. Tenho que aprimorar meu feeling para sacar com quais criaturas posso ser mais simpática. Outras não entendem e não merecem.
Depois de muito solicitar uma solução, dei uma rodada de baiana light na secretaria. Fui clara, objetiva e dei um ultimato para resolverem a bagaça.
Uma semana depois chegou uma carta ríspida do jurídico do condomínio. Jurídico? Ora, tenha dó. Mal escrita, sem explicação coerente e me pedindo mais paciência e bom senso. Diga-se de passagem, o que mais tive neste tempo todo foi paciência e bom senso.
Escrevi imediatamente uma resposta e enviei por e-mail. De forma educada, menos formal – formalidade não é o meu forte – registrando pela enésima vez todos os capítulos desta extensa novela que se arrasta há anos e que não dá nenhum IBOPE.
No dia seguinte fui para o meu cantinho amado e recebi em mãos outra missiva. Esta conseguiu se superar. Uma declaração inusitada com evidente abuso de poder.
É interessante como funciona o poder. Uma espécie de narcótico.  Nunca tive, não tenho como avaliar. É apenas uma impressão. Uma forte impressão.
O que leva um ser eleito a síndico seja lá do que for achar que é o rei da cocada e o todo poderoso? Quem passou a procuração dando plenos poderes a esta criatura? Eu mesma. Tenho direito a três votos na eleição que acontece a cada dois anos e escolhi a diretoria atual. Triplo erro.
A falta de civilidade está se alastrando cada vez mais e chegando às áreas rurais. A escassez de tato e boa vontade estão entranhadas em uma parcela que ainda considero pequena, porém faz um estrago danado.
Decidi que não vou me rebaixar a este nível. Não vale a pena. Embora esta atitude seja contrária ao meu jeito de ver a vida – não lido nada bem com falta de caráter e injustiça - não abrirei mão da minha serenidade conquistada com muito custo que é o que representa esta casa. Não permitirei que transformem nosso sonho em pesadelo.
Vou continuar cantando aos brados a música de Zé Rodrix, a trilha sonora que acompanhou toda a transformação do nosso sonho em algo concreto. Concreto mesmo – com tijolos, cimento, telhas e muito amor. “Eu quero uma casa no campo onde eu possa compor muitos rocks rurais, e tenha somente a certeza dos amigos do peito e nada mais. Eu quero uma casa no campo onde eu possa ficar do tamanho da paz e tenha somente a certeza dos limites do corpo e nada mais. Eu quero carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim. Eu quero o silêncio das línguas cansadas. Eu quero a esperança de óculos e um filho de cuca legal, eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal. Eu quero uma casa no campo do tamanho ideal, pau a pique e sapê, onde eu possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais.”
Marot Gandolfi

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