domingo, 3 de abril de 2011

Irmã sem sangue


Nasci virada para lua. Faço parte de uma família com F maiúsculo, formada por pessoas muito queridas que são pau para toda obra, faça chuva ou faça sol.

Minha sorte não acaba por aí. Tenho uma irmã que não é de sangue. Que grande asneira este lance de sangue. Tipo A, O, B, AB tanto faz. Tem gente que eu tenho certeza que nem sangue tem.

Aos 6 anos, a senhora que trabalhava na minha casa precisou sair. Mandou a filha dela em seu lugar. A garota tinha apenas 12 anos. Minha mãe matriculou-a na escola e crescemos juntas. Nunca mais nos separamos, nem com os caminhos tortuosos que a vida nos surpreende.

Minha infância foi divertidíssima com esta criatura. Aprontávamos todas e mais algumas. Confiava a ela os mais picantes segredos, se é que aos 10 anos temos segredos tão picantes assim.

Ela esteve presente em todas as fases da minha vida. Absolutamente todas.

Ao engravidar solteira aos 17 anos, ela soube em primeiro lugar.

No dia em que os amigos da minha irmã chegaram para dar a notícia que ela havia morrido, ela estava lá. Dormiu comigo naquela noite e não desgrudou um só segundo.

Soube de todos os namorados e paixões não correspondidas. Cedeu seu colo e ombro tantas e tantas vezes que é impossível enumerar. Perdi a conta faz tempo.

A morte bateu mais uma vez a minha porta. Em plena festa, minha mãe morreu dançando no interior de São Paulo. Quem chega algumas horas depois mesmo não tendo carro na época? Ela. Novamente dormiu comigo, se é que conseguimos pegar no sono. Não arredou o pé até o final. Sempre ao meu lado.

Minha filha nasceu. Ela curtiu cada segundo. O amor que nutre por meus filhos é incondicional. O que o sangue tem a ver com isso? Eu afirmo, nada.

De novo, a morte chega perto. Desta vez leva meu pai. Ele ficou doente por alguns meses. Além de outros entes queridíssimos que me ajudaram muito, quem revezava comigo no hospital e depois em casa? Ela.

Ele se foi. Antes de partir pediu para ser enterrado junto da minha mãe em Piracicaba. Quem estava comigo a tempo todo, a noite inteira novamente e foi comigo para o interior? Ela.

Figurinha carimbada esta doce criatura. Não pode ver um enterro que já fica saltitante.

Muitos devem pensar que esta mulher tem tempo livre e vida fácil para estar a minha disposição sempre que possível. Ledo engano. Mora onde Judas perdeu os ossos. As botas, as meias, as unhas e a pele ele perdeu quilômetros antes. Leva duas horas e meia para chegar a minha casa. Acorda todos os dias às 4h30 para chegar antes das 8h no trabalho. Na volta é a mesma via sacra.

Descanso no final de semana? Nem por sonho. Há anos adotou uma senhora, ex-moradora de rua, que não tem ninguém, absolutamente sem eira nem beira. É difícil definir a idade desta velhinha, um bom chute é por volta de 95. O amor entre as duas é uma lição de vida. Não dá para explicar, só dá para sentir. É um sentimento a flor da pele.

Passamos por um estresse uma única vez nestes 40 anos. Minha cachorra enlouqueceu meu marido. Como homem descente está pela hora da morte, era a cachorra ou ele. Quem se ofereceu para ficar com a maluca? Ela.

A cachorra também causou na sua casa. Acabou com a porta do carro e comeu o pneu da moto do filho, não uma vez, duas vezes. Roeu o cimento do quintal. Completamente insana. Uma bela tarde, ela bate a minha porta com a alucinada de 4 patas na guia e diz – Toma que o filho é teu. Quem pariu Mateus que crie! Brigamos, mas foi a melhor coisa que poderia ter acontecido. Meu anjo canino voltou para o lar de onde nunca deveria ter saído e hoje vive pacificamente no seio de toda a família. Tudo bem rouba um franguinho ali, outro aqui, mas vamos levando.

Já rodei a baiana profissionalmente algumas vezes por causa dela. Esta minha irmã é uma negra linda. Eu morava num prédio metido a besta. Quando chegou para me visitar, a campainha da porta de serviço tocou. Abri e me deparei com ela. Achei estranho e perguntei – O elevador social quebrou? Ela disse – Não. O porteiro me mandou subir por aqui. Surtei. Surtei de verdade. Desci numa velocidade tal que em apenas 30 segundos estava na frente do infeliz. Eu que sempre fui tão gentil e educada com todos no edifício, falei tanto na orelha daquele ser inescrupuloso e finalizei deixando claro que isso dá cadeia, é preconceito. Na minha casa ninguém decide por onde as pessoas entram.

No bota fora do meu filho, ela estava presente, claro. Uma das pessoas convidadas cumprimentou todo mundo e pulou a vez dela. Não era a primeira vez que fazia isso. Ignorei, cheguei à conclusão de que a melhor tática para lidar com gente assim é fingir que o traste não existe. Apesar de não ser rancorosa, confesso que nunca perdoei. Ela magoou a minha irmã.

A única pessoa com quem posso conversar sobre as minhas lembranças de infância, das rotinas da minha casa, com meus pais, é com a minha irmã de não sangue.

Temos um combinado. Vamos envelhecer juntas. Uma vai cuidar da outra. Este acordo que não será quebrado sob nenhuma hipótese me faz encarar o futuro com alegria. Temos planos e vamos nos divertir uma barbaridade na terceira, quarta, quinta idade.

Quando eu crescer quero ser igualzinha a ela. Levando em consideração que já estou com quase meio século, pelo andar da carruagem, terei que deixar este desafio para a próxima vida.

Se isso não é amor, então o que é? O que o sangue tem a ver com este relacionamento? Que diferença faz se eu sou branca e ela é negra? Quer mistura melhor do que um delicioso e quentinho café com leite?

É isso. Somos café com leite. Leite integral tipo A e café torrado e moído na hora. Servido nas melhores cafeterias da cidade.

Marot Gandolfi

2 comentários:

  1. QUE HISTÓRIA MAIS LINDA!!!

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  2. Linda mesmo é a nossa amizade e companheirismo.Não temos o mesmo sangue, mas temos um amor incondicional!

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