Testamento

Quem disse que a morte não pode ser divertida? Afinal é única coisa que temos certeza na vida. É fato, vamos morrer.

Por que então não lidamos com isso de uma forma bem humorada, natural e porque até não com certo planejamento?

Quando toco neste assunto com meus filhos, eles se irritam. Chatos de galocha, isso sim.

Já tenho tudo definido. Avisei que se não for cumprido, virei todas as noites e talvez durante o dia também, dependendo do que não foi feito, para puxar pernas, braços, narizes e orelhas ou comer o fígado de cada um dos meus rebentos. Ficarei sussurrando em seus ouvidos nos momentos mais inoportunos. Vale o risco?

No meu roteiro pós-morte estão relacionados itens inegociáveis:

- Quero ser cremada no crematório (claro, não seria numa fogueira feita com pneus) da Vila Alpina. O lugar é frequentado por muitos cachorros vira-latas e os quero ao meu redor.

- Nada de velório que vira a noite. Fechem o velório, vão dormir e no dia seguinte estejam lá para o incêndio dos meus ossinhos e o que restou da carninha.

- Se sobrou algo da minha carcaça que tenha serventia para alguém doem pelo amor de Deus, e corram. Estas providências devem ser imediatas. Se puder ajudar alguém depois do meu desencarne ficarei muito feliz.

- Meu cabelo é oleoso e lavo todos os dias. Por favor, eu suplico, não me coloquem no paletó de madeira parecendo que uma vaca lambeu meu couro cabeludo. Deem um jeitinho de lavar e fazer uma escova básica. Libero a chapinha. Imaginem as pessoas olhando, nossa como ela estava acabada, estava perdendo a crina! No way.

- Desde os 15 anos faço as unhas todas as semanas. Pelo amor de Deus, se eu não tiver ido à manicure no dia anterior ao meu passamento desta para melhor, chamem alguém para fazer uma francesinha básica. Minhas mãos estarão em evidência. Se nunca ninguém me viu com as unhas por fazer em vida, não será na morte, certo pessoas?

- Quanto à roupa, podem escolher uma túnica, uma bata, algo colorido, mas com classe. Uma calça skiny que fica elegante e me emagrece. No meu armário vão encontrar boas opções. Lembrem-se que estarei deitada, então nada que fique apertado e torto. Tem que ter um caimento decente. Doem todas as roupas, sapatos, bolsas, cintos e acessórios. Pode ser útil para alguma perua encarnada.

- Sapatos, nem preciso dizer que tem que ter salto alto. Básico, mas com salto.

- Não precisarei de bolsa desta vez, nem grande, nem pequena. Menos um trabalho, vejam só como estou colaborando.

- Na cerimônia em que descerão meu caixãozinho, quero 3 músicas - João e Maria (Chico Buarque), The Long and Winding Road (Paul McCartney) e a terceira ainda estou decidindo. Em breve informarei.

- Se possível, contratem um open bar, deixarei uma verba para isso. Chega uma hora que o povo não aguenta mais aquelas conversinhas de velório e piadas sem graça. Vamos dar uma turbinada para não deixar a moçada com muito tédio.

- Se alguém resolver tem um colapso, sempre tem alguém desequilibrado, deem um copo de 300 ml de caipirinha de frutas vermelhas. Se não resolver, retirem o ser do recinto, caso contrário eu juro que levanto e dou uma bifa.

- Por último, não menos importante, quero chocolates e balas no meu caixão, nada de Lindt, Godiva, pode ser Pan. Acompanhem meu raciocínio. Tenho horror a baratas. Quando os seres nocivos chegarem perto do meu corpo já gelado e fétido, estarão com a pança cheia de cacau e nem viram perto do meu ser.

Pronto, viram a lista não é tão complicada. Nunca dei uma festa em vida, tenho direito de realizar na morte. Quero que todos estejam felizes, recordando as besteiras que falei em todos os anos da minha existência.

E, relembrando, estarei esperando por vocês, só não sei se lá em cima ou em baixo. Dizem por aí que no subsolo é mais agitado, quentinho e as músicas são mais contagiantes. Pode ser propaganda enganosa.

Conto com a ajuda do povo que me conhece, caso meus filhos amarelem na hora H, o que é bem provável.

Marot Gandolfi