Continuando a aventura do meu mochilão pela Itália, a estadia em Nápoles merece uma crônica exclusiva.
Em nosso roteiro havíamos previsto sair de Veneza e ir ao norte da Itália, passando inclusive o Natal em Trento que organiza nesta época o maravilhoso Christmas Market, famoso no país da bota. Na cidade sob as águas, o frio estava tão intenso, 11 graus negativos, que depois de 1h30 esperando um ônibus no meio da neve, lágrimas escorreram pelo meu rosto, mas não dava tempo de chegarem ao queixo, viravam cubos de gelo. Nunca poderia imaginar que o frio fizesse alguém entrar em prantos. Isso também porque tenho aversão ao inverno, meu negócio é calor, verão, sol. Meu jeito lagarto de ser.
Chegamos à Veneza. Amei. Tudo estava coberto pela neve, inclusive as gôndolas. Os gondoleiros mal conseguiam soltar a voz. Um grupo de japoneses não se conformou. Vir a Veneza e não passear de gôndola ao som de Ó Sole Mio é uma heresia. Eles se dividiram, subiram nos pequenos barcos e arriscaram uma navegada pela amostra grátis da Patagônia. Os gondoleiros, irados, cantavam com muita raiva daquele povo que não sentia frio. Desafinavam de propósito.
Depois desta experiência decidimos não ir para o norte. Apesar das reservas dos hotéis já terem sido pagas e passagens de avião emitidas (e devidamente debitadas em meu cartão de crédito), não valia a pena. Trento estava com 22 abaixo de zero. Turistas já tinham falecido. É o cúmulo do passeio de índio, pagamento de promessa.
Decidimos ir para Nápoles que estava com 16 graus positivos. Eba!
Foi uma aventura inesquecível. A saga começou na estação de trem em Veneza. Três horas esperando pela locomotiva atrasada por causa da neve nos trilhos. Nós congelando. Chegou o comboio, entramos, seriam oito horas de viagem. Nossa cabine tinha lugar para seis pessoas. Entraram duas freiras e um cara sinistro que não abria a boca. Em Ferrara, entrou uma moça. A típica italiana das comédias que conhecemos. Ela excomungou a neve, o frio, a Itália, o governo, o Papa. Não parou de falar um só segundo. E, eu, como era de se esperar, também não. Eu olhava para meu filho e sentia o horror e desespero que tomaram conta de sua alma. Mas isso não foi nada perto do que estava por vir.
O trem lotado parou em Roma por uma hora com as portas trancadas. Ninguém entrava, ninguém saia. Passageiros forçando a porta para fugir, arriscando a perder braços e pernas. A loucura tomou conta dos vagões.
Passadas duas horas, fomos avisados que teríamos que trocar de trem. Beleza, lá vamos nós. Atravessamos toda a estação, crentes que agora conseguiríamos chegar em Nápoles. Entramos no outro trem e para nossa surpresa, o dito estava lotado, não tinha espaço para uma mosca. Foi a comprovação de que a lei da física não procede. Dois corpos ocupam sim um único espaço. Neste caso, 200 corpos ocupam um único espaço.
Pessoas sentadas no chão em cima de suas malas, incluindo eu que me ofereci para segurar a sacola de uma mulher. Ela devia levar paralelepípedos naquela valise. Nunca senti tanto peso em minhas pernas, nem grávida no último mês. Bebês chorando, senhoras de idade passando mal, todos gritando. No meio desta loucura toda, passa um homem, sei lá como ele conseguia andar no meio daquele tumulto, vendendo sabe o que? Meias! Isso mesmo meias! Nenhuma garrafinha de água, um barrinha de cereias. Meias! Bem apropriadas para aquela situação. E ainda por cima eram medonhas.
Perdi de vista meu filho. Passadas duas horas naquele sufoco, consigo enxergar através de uma nesga, a figura de um ser bem alto e com um bico que ia até a Costa Malfitana. Pulando baús, malas, pessoas, crianças e papagaios me aproximei do meu rebento. Não acreditei no que vi. O único espaço que ele conseguiu ficar com as malas entre as pernas foi entre os vagões e ficou segurando a porta automática. Confortável, não é mesmo? Ao menos, fez musculação. Ao lado dele estava uma moça, se é que podia ser chamada assim, musculosa, com tatuagem pelo corpo todo (não tenho nada contra tatuagens, inclusive tenho uma) e com um mastim napolitano do tamanho de um elefante que fungava o tempo todo as canelas do meu filhote. Viro para o lado e vejo dentro do banheiro imundo, muito pior que sanitários de rodoviária, cinco jovens, nada bem encarados, fumando e bebendo. Se alguém precisasse urinar ou fazer o número dois, podia esquecer!
No caminho, todos avisaram que ao chegar em Nápoles, deveríamos tirar tudo que chamasse a atenção – colar, brinco, relógio, guardar celular, notebook, qualquer coisa de valor. Quase perguntei, minhas córneas também, mas não sabia falar isso em italiano. Também nos orientaram a não pegar um taxi qualquer. É aconselhável pegar o taxi ao lado da estação de trem. Pensei que estivesse indo para uma guerra no Iraque ou ao Morro do Alemão no Rio de Janeiro.
Às 2h da manhã, 14 horas depois de sair de Veneza, desembarcamos, saímos da estação e ficamos no tal ponto de taxi. Meu filho agarrado às malas e eu com a bolsa colada no meu corpo (levou um tempo para apartar uma da outra), com a reserva do hotel em mãos. Depois de muito, mas muito tempo, passou um taxi. Parou e mostramos para ele o endereço do hotel. Ele praguejou como um louco enfurecido e falou – Não levo, é aqui perto.Decidimos percorrer o local a pé mesmo. Nem eu, nem ele aguentávamos mais ficar em pé e precisamos enlouquecidamente de um banho, sem falar na fome.
Analisamos as redondezas e percebemos que estávamos numa zona de baixo meretrício. Muitas mulheres de vida mais fácil que a minha por todas as esquinas, no meio do quarteirão também. O meu filho nervoso e preocupado comigo e eu nem aí. Eu estava mais preocupada com ele e as malas. Comecei a apertar o passo freneticamente em busca do nome da rua e do hotel. Eu marchava na frente e ele correndo e gritando atrás. Quem olhava de fora poderia achar que ele estava querendo fechar negócio comigo, levando em consideração a região que estavamos naquela hora da madrugada. Eu estava tão acabada que não corria o risco de nenhum carro me abordar. As mocinhas eram muito mais atraentes que eu.
Depois de camelarmos como loucos encontramos a hospedaria. Havia dois lances de escada. Meu filho subiu com TODAS as malas. Chegamos e fomos abordados pela criatura mais antipática do planeta, grosso, mal educado, ríspido, mas no problem. Tudo por um quarto e um banheiro.
No dia seguinte, fomos checar o bairro. De noite era ruim, de dia era muito pior. Entramos numa lan house e achamos outro hotel. Fomos conhecer e fechamos na hora. Mudamos, felizes da vida. Era dia 24 de dezembro. Vamos jantar num lugar bem legal, mordomia total, nós merecemos. É Natal!
Passeamos pela cidade maluca que é Nápoles, começamos a ver um corre-corre geral. Todos os restaurantes fechavam às 16h. Conseguimos, nos 45 do segundo tempo, comprar um pizza gelada para garantir nossa refeição natalina. Aliás, a pizza napolitana não chega aos pés de muitas pizzarias em São Paulo.
Tudo bem, o que vale é a diversão. No dia seguinte vamos jantar num restaurante chique. Dia 25 de dezembro, nenhum lugar aberto. A única opção era um mercadinho de japoneses. Compramos um miojo e fizemos na cozinha do hotel.
Tudo bem, o que continua valendo é a diversão. Vamos jantar no dia seguinte. Dia 26 de dezembro era feriado em Nápoles. Fomos correndo ao mercadinho japa e compramos Cup Noodles. Já comi muita coisa ruim, mas isso ganha disparado com quilômetros de vantagem.
Dia 27, cansamos desta diversão de apaches. Voltamos para Roma e eu beijei o chão da estação Termini.
Nunca fiquei tão feliz de ver o Coliseu! E, claro, passei na Fontana di Trevi de novo.
Marot Gandolfi
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