quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Blindagem da morte

Acabo de ter um "papo cabeça" com minha filha adolescente Filosofamos. Não teve nenhum bico, suspiro, discussão, olhos revirando. Foi normal e excepcional. 
A pequena figura comentou comigo que não vai mais pensar no futuro, no amanhã, nos próximos meses, anos, porque nada vai mudar o que vai acontecer na vida dela se ela ficar filosofando. A criatura mirim fez uma conta absurda e até coerente. Como está no primeiro ano do ensino médio, tem pouco tempo de mordomia pela frente. Usufruirá mais duas férias de 2 meses e para começar a grande travessia - vestibular, faculdade, trabalho, casamento, filhos e morte. Ela chegou aos 14 anos à mesma conclusão que eu cheguei aos 43.
No auge da minha adolescência, a única coisa que eu pensava era como seria quando eu tivesse 15. Aos 15, como seria aos 16. Cheguei a fazer uma contagem regressiva a partir dos 15 anos. Contava anos, meses e dias que faltavam para eu completar 18 anos, só tinha uma coisa na minha mente de jerico, própria de adolescente - tirar carta para poder ir aonde eu quisesse. Eu tinha uma meta. Minha filha tem medo. 
Fiz tantos planos, tinha tantos sonhos, era movida a expectativas. O futuro me reservou surpresas e cai de quatro. A partir dos 16 houve uma série interminável de frustração. Comecei a perceber que não tinha controle de nada e que fazer planos não significa necessariamente que eles se concretizarão. 
Comecei a namorar uma criatura que até hoje eu não consigo entender o motivo. Nunca foi amável, carinhoso e surpreendente. Pensando bem até que isso ele era, sempre me presenteando com surpresas bem desagradáveis. Um páreo duro para os brinquedos de terror da Disney. Uma emoção apavorante a cada curva. Ele era o segundo da canção de Chico Buarque -Terezinha - "o segundo me chegou, como quem chega do bar, trouxe um litro de aguardente, tão amarga de tragar, indagou o meu passado e cheirou minha comida, vasculhou minha gaveta, me chamava de perdida".
Apesar de tudo e, sem ter a menor intenção, este homem me deu um dos dois melhores presentes da minha vida - meu filho querido, que chegou no melhor e no pior momento da vida da minha família. Minha irmã morreu um mês antes dele nascer.
Nem assim aprendi. Segui a vida alimentando expectativas. Sempre movida a sonhos como uma cenoura na frente do burro. Colecionei uma enciclopédia de decepções. Alguns dos planos eu realizei, alguns sonhos transformaram-se em realidade.
Só comecei a pensar como a minha filha há algum tempo. Para que tudo isso mesmo? O que realmente eu estou aprendendo? Será que estou aprendendo mesmo? Que sofrimento mais besta. Insano. Procurei todas as formas de apoio, fiz cinco anos de cursos no centro espírita kardecista, fui a tarólogos, astrólogos, sensitivos, li dúzias e dúzias de livros, fiz terapia. Nada me deu a resposta que eu tanto busquei.
Até os 30 anos eu tinha verdadeiro pavor da morte. Desde criança, tinha pesadelos e acordava aos prantos, suando frio. Em meus sonhos pavorosos ou meu pai ou minha mãe morriam. Corria para o quarto deles e os via dormindo. Voltava para a cama aliviada. Aquela sensação da perda me acompanhou por muito tempo e povoou minhas noites por anos.
O temor em perdê-los não me deixou em paz nem quando adulta. Vivia sobressaltada a cada telefonema, a cada internação da minha mãe ou do meu pai. Continuava rezando, nem sei para quem, para não levá-los. Mesmo implorando para uma força maior que não os tirasse de perto de mim tão cedo, não foi o que aconteceu.
Conversando com minha pequena descobri que não tenho mais medo da morte. Aquela figura cadavérica com capa preta e uma foice na mão me cercou de todos os lados.
Ela venceu. Não tenho mais crença em nada ligado à religião. Tenho uma filosofia que me guia - ser uma pessoa do bem e isso me basta. Sigo meus valores, muitos dos quais meus pais me passaram. Levo a vida com bom humor sempre, sem arrogância, sem tristeza aparente. Blindei meus ouvidos aos assuntos que me aborrecem, resolvi agir mais e falar menos, tento fazer minha parte para tornar a vida melhor, a dos outros e a minha.
A morte me blindou. Espero que a vida não blinde a da minha filha.

Marot Gandolfi

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