domingo, 13 de fevereiro de 2011

Alzheimer, a doença ruim

Só quem vive com o Alzheimer perto é que tem noção de quão cruel é esta doença. Nenhum problema sério de saúde é bom companheiro, chapa, brother. Alzheimer, vamos combinar, é o cão. Durante anos ouvi minha família e amigos se referirem ao câncer como “doença ruim”. Existe alguma doença boa? No ranking geral dos piores males, o Alzheimer, para mim é disparado a pole position.
Tive uma tia, irmã mais velha da minha mãe, que definhou a sombra do Alzheimer. Ficou viúva muito cedo e não teve filhos. Sempre estava na minha casa e passei muitas férias com ela em Santos.
Depois que seu marido morreu, ela também morreu, só continuou a respirar. Morreu para a vida, morreu para ela, morreu para acordar e para dormir. Transmitia a todo mundo o tamanho da sua perda. Só se vestia de preto e colocava um broche de ouro que mandou fazer com a foto do meu padrinho, sempre preso na lapela do vestido. Era uma forma de compartilhar com todo mundo sua angústia. A saudade que a consumia. O tal broche chamava muito a atenção. Em 45 anos, nunca vi ninguém fazer a mesma coisa.
Ela queria berrar para o mundo, quem sabe até chegar aos ouvidos dele, que metade dela foi-se embora e que agora ela não sabia o que fazer com o que sobrou.
Após longos anos, ela abandonou o preto. Apesar de tudo, ela era vaidosa. Sempre elegantemente vestida. Sapatos “Chanel” em duas cores, marrom/marfim, azul marinho/branco, impecavelmente combinando com os vestidos muito bem passados e chiquérrimos. Perfumes só os importados e doces. Confesso que me davam dor de cabeça. Cabeleireiro todos os sábados. Nunca a vi com o cabelo desalinhado ou as unhas por fazer. Gostaria de descobrir que mágica sua cabeleireira fazia para seu cabelo durar uma semana. Eu faço uma escova num dia e no dia seguinte parece que uma vaca lambeu todo o meu couro cabeludo. Tinha uma memória de dar inveja a qualquer jovem que tenha entrado nos primeiros lugares da USP, UFSCAR, UNICAMP e Uqualquer coisa.
O danado do Alzheimer chegou de mansinho. Sem fazer muito barulho, de sacanagem, só para constrangê-la. Foi tomando forma, lentamente, quase sussurrando. A elegância foi perdendo o charme e o perigo de ficar sozinha foi ficando gritante. Não deu mais. Ela veio morar conosco. O Alzheimer, cruel como ele só, começou a andar mais rápido, quase num trote, não se contentava mais em caminhar. Apertou o passo. Começou a falar sozinha, nós também falamos de vez em quando, certo? Passou a esquecer de que tinha acabado de comer, isso é assustador – se você colocar o prato de comida 50 vezes, o estômago simplesmente não manda uma mensagem para o cérebro – Hei cérebro, fecha a boca, chega, não cabe mais um grão de arroz aqui vou explodir. A pessoa continua comendo.
Ela sempre gostou de televisão, do programa mais trash possível, também naquela época não tinha TV a cabo. Não que agora não tenha mais porcaria na TV, agora tem porcarias internacionais também. Passava horas em frente à TV e não tinha noção do que estava assistindo. Olhava pela TV não para a TV.
Já muito gorda, não levantava mais da cama e foi preciso interná-la numa clínica.
O ordinário do Alzheimer resolveu correr não para a linha de chegada, para pular barreiras e obstáculos. Não conseguia comer sozinha, passava dias sentada numa cadeira olhando para o nada, não reconhecia ninguém, só a minha mãe, que para ela tinha 9 anos.
Foi dureza ver a decrepitude acabar com a minha tia chique. Humilhante. Apavorante. É inevitável pensar – tomara que isso não aconteça comigo, Deus me livre!
O ápice do horror se deu quando ela brigou com o próprio espelho. Não se reconhecia mais. Eu já não a reconhecia há muito mais tempo.
Ela morreu depois de muito sofrimento, sozinha e triste como eu lembrava dela. Em suas “alucinações” falava muito com meu tio e com meus avós. Acredito que não eram fantasias, mas pedidos de socorro. Chega, acabou para mim, pelo amor de Deus me levem.
Li vários livros sobre esta doença macabra. Existem milhares de teorias e estatísticas que revelam as causas deste mal, nenhuma concreta. Não coma margarina, coma manteiga, não coma bacon, tome Ginko Biloba. Exercite seu cérebro, assim como você caminha, se não ele pára. Não concordo com nenhuma delas, embora acredite que uma alimentação balanceada seja saudável para qualquer criatura.
O que fez minha tia enérgica e com “gênio difícil”, como comentavam os parentes, desenvolver esta doença ruim foi a saudade. A dor da solidão. A falta da metade que a completava.
Isso é o Mal de Alzheimer, a vontade de não viver mais. Este mal arrasta a pessoa que ficou e a família toda. É uma doença familiar.

Marot Gandolfi

2 comentários:

  1. Marot, voce definiu esse safado muito bem.
    A familia sofre mais.
    Já cuidei da minha madrinha, que era bem parecida com sua tia, muito vaidosa e elegante.Minha mãe também passou por isso e agora chegou a vez do meu papai.É capaz de comer varias frutas seguidas e diz que é a primeira, já não está reconhecendo as pessoas. Não lembra de ir ao banheiro, tenho que convidá-lo, Graças a Deus, ainda é alegre e está sempre sorrindo e bem humorado.Essa doença silenciosa e sem prevenção dá medo. Deus me livre!
    Abraço
    Beth

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  2. Por isso que eu falo que ela é desumana. Acaba com a pessoa e com a familia. Extingue as energias, vai até o limite, acho que ultrapassa muitas vezes.

    bjs

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